sábado, 7 de março de 2015

A Síndrome Zumbi (trecho de um email de Mary Nordby)





Caro David,

[...]. Estamos para iniciar uma nova fase na nossa pesquisa sobre o efeito Nagel e a síndrome zumbi.  Até aqui, a pesquisa experimental passou por três fases principais, e cada umas delas terminou em resultados inteiramente inesperados.

A primeira fase foi a mais divulgada [...]. Finalmente, a NASA tinha construído a primeira Câmara de Distorção Espacial (CDE) e com ela era possível reproduzir boa parte dos efeitos físicos e psicológicos de uma viagem em atalhos de espaço-tempo. Foram feitos vários testes com cobaias e, enfim, chegou a vez dos voluntários humanos. [...] O que ninguém podia prever, todavia, era aquilo que ficou conhecido como 'efeito Nagel'. Quando dois ou mais indivíduos entravam juntos na CDE, ao sair, eles invariavelmente relatavam experiências estranhas. [...] Não demorou muito para a equipe de cientistas concluir que o que estava acontecendo era uma transferência de experiências. Depois de algum tempo na CDE, os indivíduos começavam a ter as sensações dos outros. Felizmente [...], fora da CDE, eles voltavam ao confinamento das suas próprias experiências.

Eu entrei na equipe na segunda fase do estudo do efeito Nagel, juntamente com outros renomados neurocientistas, físicos, médicos e psicólogos [...]. Descobrimos que absolutamente todas as formas de manifestação da consciência eram transferíveis na CDE; emoções, sensações corpóreas, percepções, imagens mentais, e até mesmo pensamentos e raciocínios completos [...]. Além de pessoas com habilidades sensórias comuns, tínhamos também no nosso grupo de teste indivíduos com habilidades sensórias altamente especializadas: músicos, pintores, sommeliers, perfumistas, e até uma eidética. [...] Não podíamos determinar nenhuma conexão física entre os cérebros dos indivíduos, mas podíamos observar claramente os efeitos físicos das interações nas imagens de ressonância magnética. [...] A hipótese explicativa mais cotada naquela época era a de que a distorção do espaço de alguma forma sincronizava os estados dos dois cérebros por alguns segundos. O que nos levou a descartar essa hipótese foram nossas primeiras observações de casos da síndrome zumbi.

[...]. O caso zero ocorreu com um violinista que tínhamos em nosso grupo de voluntários. [...] Ao sair da CDE, ele chorava muito e passou cerca de 5 horas sem conseguir falar. Quando conseguiu articular algumas palavras, não soube explicar o que tinha experimentado, e, só depois de algum esforço, conseguiu dizer que lhe parecia ter ouvido a introdução de Stairway to Heaven, embora, ao mesmo tempo, conforme seu relato, a sensação era muito diferente das sensações sonoras que ele conhecia, na verdade, ela era diferente de tudo que ele conhecia. [...] Algo assim nunca tinha acontecido, mas foi apenas o começo. [...] Só depois de muita discussão, nosso grupo chegou à conclusão de que nosso violinista e outros indivíduos como ele não eram seres 'conscientes' no sentido fenomênico do termo. Quando eles entravam na CDE com humanos conscientes pela primeira vez, a transferência lhes dava a primeira experiência real de suas vidas. Começou aí a terceira fase da pesquisa, o estudo específico da síndrome zumbi.

[...]. Os dados observacionais têm mostrado reiteradamente que, quando um cérebro não consciente recebe uma transferência, a atividade correspondente é detectada nos correlatos neurais da experiência, e o indivíduo tem a experiência. Por outro lado, em testes fora da CDE, vemos que a atividade neuronal sempre aparece junto com a devida estimulação externa, mas o indivíduo relata que não tem a 'super experiência' (é como eles muitas vezes se expressam; nós preferimos 'experiência real'), apenas a 'experiência zumbi' (nós preferimos 'pseudoexperiência'). Isso é o que mais nos intriga. Ainda estamos longe de explicar como é possível haver diferenças na experiência sem que, aparentemente, haja diferenças na atividade neuronal. Outra questão perturbadora é a questão acerca do papel da consciência. Nossos exames não apontam nenhum déficit cognitivo ou funcional dos indivíduos não conscientes em relação aos conscientes. É como se a consciência não fizesse diferença para o desempenho de nenhuma atividade humana, seja corriqueira ou especializada. Ela só faz diferença quando os indivíduos descobrem que não a possuem. Agora mesmo, nós estamos enfrentando uma situação difícil por causa disso. Vários de nossos voluntários não-conscientes desenvolveram um tipo de adição a experiências conscientes e muitos relatam que suas vidas fora da CDE se tornaram insuportáveis. Um deles me declarou recentemente que agora só se sente vivo na CDE. Alguns demonstraram sinais de depressão, e já estão sendo tratados. [...] Não há como deixar todos permanentemente dentro da CDE junto com indivíduos conscientes, e não temos a menor ideia se poderíamos desenvolver um tratamento para a síndrome zumbi. [...]

Bem, de todo modo, a nova fase de estudos que estamos iniciando renova as nossas esperanças. Agora o que precisamos é de avanços teóricos efetivos. De fato, nossa ambição é conseguirmos uma teoria da consciência que explique o efeito Nagel e os sintomas da síndrome zumbi. Com sua entrada na equipe, esperamos fazer mais progressos.

Meus melhores votos!

Mary

2 comentários:

  1. Muito massa o texto, Cícero!
    Chalmers curtiu, rsrs

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  2. Opa! Agora deu um nó aqui. Peraí que não sei se o Chalmers curtiria meu comentário agora, rs.

    Para o argumento dos zumbis chegar à sua conclusão, precisamos aceitar que a consciência fenomênica não é causalmente eficaz no mundo físico (que ela não faz diferença).
    Contudo, nessa possibilidade do texto, a consciência fenomênica se torna causalmente eficaz (causa depressão, por exemplo). Se ela se torna causalmente eficaz, então isso anula o argumento dos zumbis fenomênicos e não podemos concluir a possibilidade deles.
    Mas, se não podemos concluir a possibilidade deles, isso me pareceu implicar na não possibilidade da possibilidade do texto.
    O que acha?

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