Caro David,
[...]. Estamos para iniciar uma nova fase na nossa pesquisa sobre o efeito Nagel e a síndrome zumbi. Até aqui, a
pesquisa experimental passou por três fases principais, e cada umas delas terminou em resultados inteiramente inesperados.
A primeira
fase foi a mais divulgada [...]. Finalmente, a NASA tinha construído a primeira
Câmara de Distorção Espacial (CDE) e com ela era possível reproduzir boa parte dos efeitos físicos e psicológicos de uma viagem em atalhos de espaço-tempo. Foram feitos vários testes com
cobaias e, enfim, chegou a vez dos
voluntários humanos. [...] O que ninguém podia prever, todavia, era aquilo que
ficou conhecido como 'efeito Nagel'. Quando dois ou mais indivíduos entravam
juntos na CDE, ao sair, eles invariavelmente relatavam experiências estranhas. [...]
Não demorou muito para a equipe de cientistas concluir que o que estava
acontecendo era uma transferência de experiências. Depois de algum tempo na CDE,
os indivíduos começavam a ter as sensações dos outros. Felizmente [...], fora
da CDE, eles voltavam ao confinamento das suas próprias experiências.
Eu entrei na
equipe na segunda fase do estudo do efeito Nagel, juntamente com outros
renomados neurocientistas, físicos, médicos e psicólogos [...]. Descobrimos que
absolutamente todas as formas de manifestação da consciência eram transferíveis
na CDE; emoções, sensações corpóreas, percepções, imagens mentais, e até mesmo
pensamentos e raciocínios completos [...]. Além de pessoas com habilidades
sensórias comuns, tínhamos também no nosso grupo de teste indivíduos com habilidades
sensórias altamente especializadas: músicos, pintores, sommeliers,
perfumistas, e até uma eidética. [...] Não podíamos determinar nenhuma conexão
física entre os cérebros dos indivíduos, mas podíamos observar claramente os
efeitos físicos das interações nas imagens de ressonância magnética. [...] A
hipótese explicativa mais cotada naquela época era a de que a distorção do espaço
de alguma forma sincronizava os estados dos dois cérebros por alguns segundos.
O que nos levou a descartar essa hipótese foram nossas primeiras observações de
casos da síndrome zumbi.
[...]. O caso
zero ocorreu com um violinista que tínhamos em nosso grupo de
voluntários. [...] Ao sair da CDE, ele chorava muito e passou cerca de 5 horas sem conseguir falar. Quando
conseguiu articular algumas palavras, não soube explicar o que tinha
experimentado, e, só depois de algum esforço, conseguiu dizer que lhe parecia
ter ouvido a introdução de Stairway to
Heaven, embora, ao mesmo tempo, conforme seu relato, a sensação era muito
diferente das sensações sonoras que ele conhecia, na verdade, ela era diferente
de tudo que ele conhecia. [...] Algo assim nunca tinha acontecido, mas foi
apenas o começo. [...] Só depois de muita discussão, nosso grupo chegou à conclusão de que nosso
violinista e outros indivíduos como ele não eram seres 'conscientes' no
sentido fenomênico do termo. Quando eles entravam na CDE com humanos
conscientes pela primeira vez, a transferência lhes dava a primeira experiência
real de suas vidas. Começou aí a terceira fase da pesquisa, o estudo específico da síndrome zumbi.
[...]. Os dados observacionais têm mostrado reiteradamente que, quando um cérebro não
consciente recebe uma transferência, a atividade correspondente
é detectada nos correlatos neurais da experiência, e o indivíduo tem a experiência. Por outro lado, em testes fora da CDE, vemos que a atividade neuronal sempre aparece junto com a devida estimulação externa, mas o indivíduo relata que não tem a 'super experiência' (é como
eles muitas vezes se expressam; nós preferimos 'experiência real'), apenas a 'experiência
zumbi' (nós preferimos 'pseudoexperiência'). Isso é o que mais nos intriga. Ainda estamos longe de explicar como é possível haver diferenças na experiência sem que, aparentemente, haja diferenças na atividade neuronal. Outra questão perturbadora é a questão acerca do papel da consciência. Nossos exames não apontam nenhum déficit cognitivo ou funcional dos indivíduos não conscientes em relação aos conscientes. É como se a consciência não fizesse diferença para o desempenho de nenhuma atividade humana, seja corriqueira ou especializada. Ela só faz diferença quando os indivíduos descobrem que não a possuem. Agora mesmo, nós estamos enfrentando uma situação difícil por causa disso.
Vários de nossos voluntários não-conscientes desenvolveram um tipo de adição a
experiências conscientes e muitos relatam que suas vidas fora da CDE se
tornaram insuportáveis. Um deles me declarou recentemente que agora só se sente
vivo na CDE. Alguns demonstraram sinais de depressão, e já estão sendo
tratados. [...] Não há como deixar todos permanentemente
dentro da CDE junto com indivíduos conscientes, e não temos a menor ideia se
poderíamos desenvolver um tratamento para a síndrome zumbi. [...]
Bem, de todo
modo, a nova fase de estudos que estamos iniciando renova as nossas esperanças.
Agora o que precisamos é de avanços teóricos efetivos. De fato, nossa ambição é
conseguirmos uma teoria da consciência que explique o efeito Nagel e os
sintomas da síndrome zumbi. Com sua entrada na equipe,
esperamos fazer mais progressos.
Meus
melhores votos!
Mary
Muito massa o texto, Cícero!
ResponderExcluirChalmers curtiu, rsrs
Opa! Agora deu um nó aqui. Peraí que não sei se o Chalmers curtiria meu comentário agora, rs.
ResponderExcluirPara o argumento dos zumbis chegar à sua conclusão, precisamos aceitar que a consciência fenomênica não é causalmente eficaz no mundo físico (que ela não faz diferença).
Contudo, nessa possibilidade do texto, a consciência fenomênica se torna causalmente eficaz (causa depressão, por exemplo). Se ela se torna causalmente eficaz, então isso anula o argumento dos zumbis fenomênicos e não podemos concluir a possibilidade deles.
Mas, se não podemos concluir a possibilidade deles, isso me pareceu implicar na não possibilidade da possibilidade do texto.
O que acha?