sábado, 5 de fevereiro de 2011

Filósofos Analíticos


Há muitos clichês sobre os filósofos analíticos. Tanto clichês com algum fundamento como clichês sem fundamento nenhum, tanto clichês lisonjeiros como clichês revoltantes. Seja como for, simplesmente não dá para montar com clichês um retrato em que qualquer filósofo analítico se reconheça, e menos ainda um em que qualquer filósofo não analítico se desconheça. Todo filósofo analítico tem a preocupação de se expressar com clareza? Não é verdade. Todo analítico é mais interessado em pensar sobre os problemas da filosofia do que em fazer exegese? Não é verdade. Todo analítico trata os problemas filosóficos como problemas acerca da linguagem? Definitivamente, não é verdade. Mas se não podemos usar esses clichês para identificar analíticos e não analíticos, como podemos fazer isso? Existe algum teste de DNA para analiticidade? Não se “DNA” significa o que normalmente significa (agora falei como um analítico). Ainda assim, quando penso em mim como analítico penso em mim como tendo um tipo de relação de consaguinidade com outros filósofos, um tipo de genealogia filosófica. Na minha formação filosófica, as pessoas que mais me influenciaram ou eram da lógica, ou eram analíticos de carteirinha, ou tinham a ousadia de se expressar de modo inteligível, ou tinham um grande senso de humor. Eu sabia que sob certos aspectos essas pessoas tinham sido como eu em seu período de formação e que foram influenciadas por pessoas que tinham muitas das características que eu admirava nelas. E sabia que essa cadeia de influências continuava ainda por algumas gerações de filósofos adentro, até certo ponto. Essas gerações constituem a minha linhagem, foi delas que herdei meu “DNA analítico”. Bem, uma vez que se aceite que essa herança é o que faz de alguém um filósofo analítico, é possível então reivindicar que há pelo menos um modo de pintar um retrato representativo desse tipo de filósofo. De fato, pode-se mesmo dizer que é possível dar uma definição recursiva de “filósofo analítico”, ainda que seja uma definição aberta. A definição teria duas cláusulas: 1. Frege, Russell e Moore são filósofos analíticos; 2. Dado que B1,..., Bn são filósofos analíticos, se B1,..., Bn são as principais influências filosóficas de A e A é um filósofo, então A é um filósofo analítico. A definição é aberta porque acho que seria um exagero acrescentar a cláusula do fechamento e declarar: “nada mais é um filósofo analítico”. A expressão “principais influências” é um tanto vaga, o que tem vantagens e desvantagens. A vantagem é que, com ela, a definição ganha uma adaptabilidade que os clichês não lhe poderiam dar. Essa adaptabilidade faz do meu retrato do filósofo analítico um retrato abstrato, ou talvez até cubista. A desvantagem é que, com ela, a questão sobre se um filósofo é analítico ou não pode se mostrar bem controversa em alguns casos. Por exemplo, Rorty é analítico? De onde vêm suas principais influências filosóficas? Sabemos que ele cresceu em um antro de analíticos. Mas isso não quer dizer que suas principais influências filosóficas venham de analíticos. A influência que ele recebeu de filósofos continentais com certeza foi muito forte. Eu diria que Rorty não é analítico, embora tenha herdado algumas boas características do lado analítico da sua família. Mas essa é a avaliação que faço com base no que penso serem as principais influências filosóficas de Rorty. Sempre é possível uma avaliação diferente. Essa desvantagem torna a definição na realidade inútil para casos controversos. De qualquer forma, mesmo quando ela é inútil, penso que é correta. No final das contas, o que faz com que um filósofo seja analítico ou não é sua formação. Não é porque um filósofo escreve de forma acessível que ele é analítico, mas é porque um filósofo teve certa formação e recebeu certas influências que ele é analítico e virtualmente escreve sem enrolação. É bom que se diga, porém, que a formação (ou deformação) de um filósofo pode se estender até bem depois de seu doutoramento e, nos casos mais felizes, pode durar até a vida inteira. Assim, não se pode dizer que uma vez analítico, sempre analítico. E o mesmo vale para o não analítico. Sempre é possível que uma nova influência ganhe uma importância inesperada na vida de um filósofo e, graças a ela, ele se torne analítico. É claro que isso depende também de sua disposição para mudanças. Às vezes os hábitos filosóficos de uma pessoa estão de tal forma cristalizados que não lhe permitem nem mesmo mexer a cabeça para ver o que se passa ao redor. Não sei se há remédio para esse tipo de engessamento intelectual. O que eu posso fazer é divulgar textos de analíticos e esperar que eles influenciem alguém. Esse é um dos principais objetivos deste blog.

4 comentários:

  1. Parece que sua ideia de o que é um analítico não se manteria num mundo possível no qual Frege, Russell etc não existiram. No entanto, se "filósofo analítico" quer realmente expressar um conceito real, então parece que se eu sou um filósofo analítico com o modo que eu faço filosofia, mesmo que eu existisse em outro mundo possível no qual Frege, Russell etc não tivessem existido, se eu fizesse filosofia tal como faço, eu seria um filósofo analítico.

    E eu te pergunto: como decidir se Rorty tem mais influencias continentais ou analíticas? Eu respondo: pescando características na obra de Rorty que sejam características distintamente analíticas ou continentais. Repara que essas características certamente não podem ser o fato de Rorty ter certas influências, pois se não cairíamos em circularidade.

    A formação que cada um recebeu pode não indicar nada sobre o filósofo ser um analítico. Perceba que muitas pessoas são formadas apenas lendo obras de filósofos analíticos, mas persistem na sua vida fazendo interpretações de filósofos como Frege, sem nunca se dedicar a solução de problemas filosóficos.

    Será que não seriam as características distintivas da filosofia analítica os fatos de ela ser clara, logicamente rigorosa e com dedicação à descoberta de soluções para problemas filosóficos?

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  2. Olá Rodrigo!

    Bacana receber seu comentário! Vc é um dos responsáveis pelo blog Investigação Filosófica, certo? Vcs fazem um trabalho incrível. Vi que vcs reproduziram alguns conteúdos do blog do NEFA. Obrigado por citar a fonte!
    Bem, sobre minha definição genética de 'filósofo analítico', admito que não é a definição dos meus sonhos, mas ainda penso que ela é a que quadra mais confortavelmente com os contornos nebulosos do conjunto dos que na prática se consideram ou são considerados analíticos. Eu gostaria de dizer que todo analítico é claro, mas aí eu me lembro de Wittgenstein... Eu gostaria de dizer que todo analítico põe os problemas filosóficos à frente dos filósofos, mas aí eu penso nos eventos analíticos que são dedicados a um filósofo específico... É verdade que dar uma definição é em grande parte uma questão de escolher o que está in e o que está out. Efetivamente, eu poderia adotar uma definição mais exigente. Mas então os cortes que teria que fazer no 'corpo analítico' poderiam afinal ser muito dolorosos. O que me parece é que a filosofia analítica cresceu demais, e continua crescendo, a ponto de abrigar variedades de filósofos muito diferentes sob sua sombra. Creio que é mais difícil dar uma definição fechada dessas coisas que crescem e evoluem assim de forma quase orgânica. Parece-me mais adequado que a definição seja também de certo modo orgânica, no sentido de que possa se adaptar aos casos mais heterodoxos. Penso que minha definição tem esse caráter mais flexível. Mas isso lhe traz também algumas desvantagens, e muitas vc apontou. Ela é contingente, o critério de analiticidade que ela estabelece é em grande parte subjetivo, e ela não nos previne contra anomalias. Mas é a vida. Como disse, meu retrato do filósofo analítico é meio cubista mesmo.
    Agora, é preciso ver que a definição não desculpa a filosofia medíocre. Só porque alguém pode ser considerado um filósofo analítico, não significa que faça um bom trabalho. Creio que há boa filosofia analítica e filosofia analítica apagada. Para mim, a filosofia só é boa se for ousada, se atacar as questões diretamente, e se fizer isso do modo mais claro e rigoroso possível. Enfim, as qualidades que vc considera que sejam definidoras do filósofo analítico, eu tomo apenas como qualidades do bom filósofo analítico. De qualquer forma, acho que concordamos que esse é o tipo de filósofo que devemos e queremos ser.

    Abração!

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  3. Será que posso me descobrir uma filósofa analítica? São minhas experiências (internas e/ou externas) que determinam isso em mim? Fiquei pensando....
    Erione

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  4. Certamente que você pode, Erione. As nossas experiências são sempre importantes nas escolhas que fazemos, e as escolhas filosóficas não são exceção. Mas não acho que sejam suficientes para determinar nossas preferências intelectuais. Tem gente que ama matemática e tem gente que odeia. As experiências das pessoas podem ser um fator importante na explicação dessas diferentes atitudes em relação à matemática, mas também há fatores mais objetivos. É a mesma coisa com o estilo filosófico que alguém adota. Nesse caso, um exame racional das alternativas pode ser o fator determinante.

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