segunda-feira, 24 de junho de 2013

As Necessidades da Alma


DISCÍPULO: "Mestre, qual é o sentido da vida?"
MESTRE: "A vida é um rio, gafanhoto"
DISCÍPULO: "Mestre, o que isso significa?"
MESTRE: "Ao meditares, entenderás. Ao entenderes, verás. Ao veres, saberás"


(...)


O homem é um animal peculiar. Desde o começo, habitou cavernas. Desde o começo, deu-se conta de que não precisava só de alimento, sono, abrigo, calor e coisas assim, as banalidades de que todos os outros animais necessitam. Havia outras necessidades sob o Sol. ("Nem só de pão viverá o homem", uma vez um homem disse isso ao Diabo. Prometeu poderia ter dito a mesma coisa enquanto Epimeteu moldava os homens). Não só havia outras necessidades, havia necessidades ainda mais prementes que as do corpo; tanto assim que, para satisfazê-las, muitos homens sacrificaram a própria vida. “Necessidades da alma” é como às vezes as chamam, mesmo os que não acreditam em alma. Elas têm a ver com coisas muito mais sutis que pão e água, têm a ver com a imagem que um homem tem do mundo, de si mesmo e dos outros homens. As pessoas querem se sentir confortáveis com essa imagem, e por isso buscam coisas como glória, beleza, poesia, fama, amor... Diferentes pessoas são atraídas por diferentes dessas coisas, mas há uma dessas necessidades intangíveis que toca a todos por igual, que precisa ser atendida antes de tudo para que aquela imagem primordial não seja arruinada: a necessidade de sentido. No final de "A Guerra do Fogo", Naoh olha para a Lua e é possível vislumbrar em seus olhos perguntas que talvez nem ele mesmo soubesse formular. Mas, mesmo que não o soubesse, permanecia nele a necessidade de explicações, porquês, sentidos, propósitos, lógicas, alegorias, narrativas, certezas, finalidades, significados, justificativas... Essas são necessidades tão vitais quanto a de alimento. Sem pão, o corpo definha e enfraquece, mas um mundo desprovido de razão sufoca pelo horror que infunde, destrói o que há de humano no homem, torna a vida insuportável. (No conto "O Imortal", Borges descreve a cena em que Cornélio Agrippa percorre a arquitetura delirante e despropositada da Cidade dos Imortais e pensa três frases: "Este palácio é obra dos deuses"... "Os deuses que o construíram morreram"... "Os deuses que o construíram estavam loucos"). Mas, se os homens têm carências singulares, também têm talentos singulares. O homem é um animal engenhoso e desde o início se pôs a dar explicações para tudo. Naoh talvez imaginasse explicações para as mudanças da Lua, ou talvez se recordasse das explicações dos mais velhos. De qualquer forma, seus olhos não pareciam as janelas de uma alma satisfeita. Quem está satisfeito, já não sente a náusea. Isso era verdade na infância do homem e é verdade agora. Por toda parte, são os insatisfeitos com as explicações disponíveis no mercado que sofrem com a necessidade de sentido. Na religião, na ciência, na arte, nas novelas televisivas, em muitos lugares um homem normal pode buscar provisão para suas necessidades anímicas, mas há pessoas mais difíceis de satisfazer que esperam receber algum socorro da Filosofia. Creio que o discípulo do diálogo acima é um desses raros. Não creio, porém, que as palavras do seu mestre tenham ajudado muito.

Ainda é bastante difundida a visão de que os analíticos são filósofos que não se preocupam com as necessidades da alma. Essa visão, como toda generalização desqualificada, é equivocada. É claro que analíticos já olharam a lua como se ela fosse um enigma, é claro que analíticos já se sentiram perdidos diante da transitoriedade da vida, é claro que no peito dos analíticos também bate um coração. Uma coisa que contribuiu para esse equívoco foi a declaração de guerra que os primeiros analíticos fizeram contra as tentativas da Filosofia de teorizar sobre coisas como o sentido da vida. Eles de fato sustentaram que todo discurso que pretende discorrer sobre tais coisas é sem sentido. Mas essa reivindicação, apesar de sua contundência, não pode ser interpretada como uma negação das necessidades humanas de ordem superior. Quem já leu os textos dos fundadores do movimento analítico sabe que eles admitem que essas necessidades não só são reais como são da mais alta importância. O que eles negam é que elas possam ser solucionadas positivamente pela Filosofia. Carnap, por exemplo, aponta a arte como um meio mais apropriado para alguém expressar suas “atitudes para com a vida”. Wittgenstein, por sua vez, parece acreditar que é possível algum tipo de conhecimento não discursivo, místico, do sentido da vida. Mas, uma vez que se alcance tal conhecimento, não é possível comunicá-lo (“Não é por essa razão que as pessoas para as quais, após longas dúvidas, o sentido da vida se fez claro não se tornaram capazes de dizer em que consiste esse sentido?” TLP 6.521). Dessa forma, pode-se verificar que a posição desses filósofos não consistia num ceticismo quanto à realidade ou à dignidade das necessidades da alma, consistia antes num ceticismo quanto à possibilidade de expressão das mesmas através do discurso filosófico. De qualquer forma, até essa segunda forma de ceticismo tem sido contestada pelas gerações mais recentes de analíticos. Na filosofia analítica dos nossos dias, já não é mais tabu filosofar sobre o sentido da vida. Analíticos incontestes como Thomas Nagel têm feito isso. Com razão, se nós temos necessidade de sentidos, vamos à busca de sentidos! Por que um filósofo, qua filósofo, não poderia fazer isso? Em um ponto, porém, os analíticos de hoje concordam com os de ontem: é preciso que o trabalho filosófico tenha um valor cognitivo, ou seja, é preciso que ele contribua de alguma forma para o incremento do conhecimento humano. Se alguém quer filosofar sobre o sentido da existência, não precisa pedir licença para isso; no entanto, precisa tratar o tema de uma forma acessível a seus pares, com base em argumentos sujeitos à análise lógica e à crítica pública. É precisamente esse tipo de valor cognitivo que, a meu ver, falta nas respostas do mestre ao atormentado gafanhoto. O discípulo sai de sua entrevista com o mestre sabendo mais sobre o sentido da vida? Eu acredito que não. Pode ser até que depois ele descubra algo por si mesmo, e talvez, em última instância, esse seja o único modo de satisfazer sua alma, mas se o mestre lhe dá uma resposta que não lhe traz nenhuma luz, que não aponta nenhuma direção de forma compreensível, ele só está perdendo tempo ao ouvi-la. As necessidades da alma são graves, e não se deve agravá-las ainda mais com o uso de uma linguagem críptica e esotérica. É essa a mensagem dos analíticos no final das contas.

6 comentários:

  1. Olá, Cícero!

    Pra começar, digo que vc estava realmente inspirando. Belas palavras escritas de uma forma leve e clara, tipicamente analítica|:).......
    Depois escrevo mais, deu um pro agora!!!huihihih
    Abraço!

    Andreia

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  2. Necessidades do corpo e necessidades da alma tomam um sentido dualista.Isso,para um primeiro momento, pois, gafanhoto poderia pensar apenas nas necessidade do corpo e não nas necessidades possiveis da alma. Mas, o fato de gafanhoto pensar em necessidade do corpo, afastaria a alma de seu corpo? E da mesma forma, em sentido inverso, para a necessidade da alma.Gafanhoto poderia pensar que a alma tomaria distância do corpo, assim como ocorre para com as aguas de um rio, a percorrer caminhos sobre si mesmo. O rio é o mesmo sem agua? Vejo que gafanhoto precisa de um movimento de união entre a alma e o corpo. E isso, formando uma unidade, e não dualidade.

    E. silva

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  3. Não importa a área que você atua, sendo da filosofia ou não. Em um determinado momento você irá se perguntar sobre o sentido da vida e esses mistérios que nos rodeiam, é uma pergunta recorrente da vivência humana. E antes de mais nada os filósofos analíticos são seres humanos como todos nós, e concerteza já se perguntaram sobre coisas da vida, sobre a alma. Porque são perguntas normais e quase que obrigatórias para a vida humana. Pois foi dessas e de outras perguntas que surgiu o ceticismo, pelo questionamento.
    E belo texto.

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    1. A necessidade de sentido traz consigo muitas inquietações. Uma delas é a busca por respostas das quais nem sempre são acessíveis pela razão. O fato de nos questionarmos nos conduz a uma mudança de perspectivas e de atitudes na medida que passamos a avaliar aquilo que de fato é necessário. Sendo assim, pra quem sente a necessidade da constante mudança, torna-se quase que obrigatória a não conformação com as "certezas" que tendem a nos paralisar. E a partir de então continuar a busca pelo sentido da vida, seja filósofo ou não.
      Edna

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  4. Os raciocínios filosóficos devem estar fundamentados em bases e construções que possam ser atingidas por muitos, ou por muitos que busquem compreender, e neste ponto o texto nos faz um questionamento relevante, que não se limita ao entendimento ou não do sentido da vida pelo discipulo através do ensinamento de seu mestre, mas nos leva a questionar todas as tentativas de explicação, inclusive filosóficas, que se apresentam inúmeras vezes como inalcançáveis, fugindo desta forma a crítica e aos testes lógicos.

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